sábado, 8 de junho de 2013

Que Deus me perdoe, mas tinha de ser assim



O nosso Batalhão de Caçadores  2872,
sediado por uns meses no Grafanil, (uma espécie de Santa Margarida da metrópole) era um Batalhão de Intervenção que “qual corporação de Bombeiros”, actuava onde havia fogo.

Mas não só de tiros vive o homem, e nos intervalos para descansar, acumulávamos a guerra com outros serviços diários, tais como:
Patrulhas no Musseque do Cazenga, escoltas às colunas MVL de reabastecimento (Movimento de Viaturas Logísticas), aos pontos estratégicos como a Fábrica da pólvora, a Estação principal do Cacuaco de abastecimento de águas à Cidade de Luanda, a Subestação principal de Electricidade lá do sítio, o Controle de pessoas, a Segurança  e a Vigilância (24 horas) da Rede de arame farpado que circundava a Cidade,  etc etc.

Rede de Arame Farpado com início e fim "dentro" do mar.
 Esta é a vista, observada pelo Sentinela do Posto nº1
Era impossível mudar de lado sem o "nosso" consentimento 

Posto de Sentinela nº1  (lado da Corimba)


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Incluída nos etc. tínhamos (dentro da nossa jurisdição) os patrulhamentos até Catete, dos comboios com destino a Nova Lisboa, e não só.


A história deste patrulhamento, destaca-se de tantos outros por um pequeno pormenor. Nesse dia, embarcamos como sempre em Luanda na estação de origem. Eu e o meu grupo, numa rápida inspecção visual, verificamos que tudo estava normal até mesmo a confusão gerada por muitos passageiros que sem lugares marcados e após a ordem de embarque corriam desordenadamente para os lugares ao pé das janelas. Uns minutos depois, com o nosso "aconselhamento" e a partida, a discussão acabava rapidamente.

A viagem começava com o comboio a atravessar alguns bairros de lata, onde muitos fechavam os vidros das carruagens com receio de alguma pedrada e não só, pois passava em sítios a pouco mais de um metro das “casas”.
E assim, por não haver tanta circulação de ar, sobressaia de imediato o cheiro característico a catinga que emanava de "alguns" corpos suados, juntando-se a outros odores, nomeadamente de urina e a peixe seco que mais fazia lembrar o inesquecível óleo de fígado de bacalhau, da nossa infância.

Era vulgar, ver famílias levarem um penico na viagem, que colocavam debaixo dos bancos. Sem vergonha, eram usados sem inibições por mães e filhos nos momentos mais aflitivos.
Os que não traziam “farnel” para a viagem, como a tradicional mandioca, milho assado ou outros, desenrascavam-se comprando nas estações e apeadeiros às “peixeiras”, que de cestas à cabeça apinhadas de peixe seco, esperavam o comboio para fazerem negócio.

De Luanda até Catete (cerca de 50 Km) os comboios não usavam o vagão Rebenta Minas nem havia patrulhamento à linha porque era considerado Zona de segurança. Fora dessa zona, todo o cuidado era pouco.
Para evitar os frequentes ataques e as minas, era comum as composições levarem agarrados à frente da máquina, um vagão carregado com várias toneladas de terra fazendo de rebenta minas, conforme podes ver nas imagens abaixo. Por vezes viajavam tropas deitadas e fortemente armadas no seu interior.


Assim sendo, era nossa obrigação, inspeccionar e controlar somente o interior do comboio onde se inclui como é óbvio, os passageiros.

Fazendo jus ao lema do nosso Batalhão (CONQUISTANDO OS CORAÇÕES SE VENCE A LUTA), educadamente Eu e o meu pessoal sorrindo, abordávamos os passageiros convidando os adultos a apresentarem o Bilhete de Identidade e o Cartão de Residência, afim de se confirmar os elementos neles contidos.
Nas traseiras da composição, seguiam as carruagens “open space” da Plebe, e na frente, a dos VIPs.

Cumprindo escrupulosamente as indicações do comandante, evitávamos descriminar pretos e brancos. Tudo decorria sem grandes percalços até que chegamos às carruagens de 1ª classe. Acompanhado pelo meu pessoal, abrimos a porta do primeiro compartimento e demos os Bons dias.
Logo à entrada, estavam três africanos e mais ao fundo perto da janela, um casalinho de brancos ternurentos, que “enlevados ou não” pareciam estar nas nuvens, aos abraçados e beijinhos.
 
Os primeiros mostraram de imediato os documentos “que era obrigatório possuir”. Quanto aos namorados, tive de tossir e repetir o convite pedindo “bem alto e em bom som” a identificação, mas sem efeito, pois continuávamos a ser ignorados. Escusado será dizer que tiveram de ser “abanados” para caírem na real. Fomos então surpreendidos com a altivez usada, (provavelmente filhos de alguém com pedigree) e descobriu-se afinal que Ele não tinha em seu poder os ditos elementos de identificação.

À frente de alguns passageiros que entretanto se reuniram no corredor, contestou e ameaçou, mas de nada lhe valeu. Foi então convidado “à semelhança do que era habitual” a descer na próxima estação caso não mostrasse os cartões até lá.

Em suma, foi com alguma resistência que o “convencemos” a sair na Estação de CATETE. Mas não ficou só "solidária, num acto de amor” a namorada também desceu.



A polícia tomou conta da ocorrência. Quanto a nós, ficamos uma vez mais apeados, porque chegamos à estação limite, e fomos substituídos como estava previsto, pelos militares do  Cantão seguinte.
Embarcamos nos Unimogues que “pela estrada” já lá estavam à nossa espera, e regressamos à base como quem diz, ao Grafanil.

Nós, com o sentido do dever cumprido, e Eles “tadinhos” com Azar…

Que Deus me perdoe, mas tinha de ser assim